Brasil - Prof. Henrique Carneiro
Henrique Carneiro defende que a política de repressão militar contra a produção e o consumo de drogas deve ser reconsiderada, como está fazendo o Uruguai.
“Muito pertinente” é como o historiador Henrique Carneiro qualifica o projeto de lei apresentado na última quarta-feira (8) pelo governo uruguaio para legalizar a maconha no país. O professor da Universidade de São Paulo e pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos elogia sobretudo a ideia de criar um monopólio estatal sobre a produção, distribuição e comercialização da substância.
“Isso elimina o risco de que o narcotráfico se legalize como empresas e impede que grandes multinacionais do álcool e do tabaco se apossem desse novo mercado”, resume. Carneiro estuda a história das bebidas, da alimentação e das drogas. É autor ou organizador de oito livros sobre o tema, e acredita que a iniciativa do presidente José Mujica está em sintonia com a cada vez mais numerosa corrente mundial que pede a elaboração de novas estratégias de combate ao narcotráfico.
“O projeto de lei vem muito a calhar com a demanda global pela revisão do paradigma vigente da ‘guerra contra as drogas’”, contextualiza. Na entrevista a seguir, o pesquisador defende que a política de repressão militar contra a produção e o consumo de drogas deve ser reconsiderado e explica porque algumas substâncias psicoativas são legais, como o álcool e o tabaco, enquanto outras estão proibidas.
Por que cada vez mais gente acredita na falência da ‘guerra contra as drogas’?
Por várias razões. A primeira delas é social. Esse paradigma tem significado uma forma de criminalizar a pobreza, de atacar as populações mais pobres, que são penalizadas por uma prática [uso de drogas ilegais] que, do ponto de vista da ciência ou dos critérios éticos e morais, não tem nenhuma distinção do uso das drogas lícitas. O fato de uma pessoa usar maconha ou cocaína é absolutamente análogo a utilizar álcool ou tabaco. Não existe argumento baseado na ciência ou no pensamento jurídico que justifique a separação de substâncias lícitas e ilícitas, na medida em que algumas substâncias lícitas são até mais danosas à saúde do que as ilícitas.
Esse é um primeiro argumento de fundo, que é quase filosófico, e envolve o direito à autodeterminação e à autonomia do próprio corpo. Há níveis problemáticos no uso de substâncias psicoativas, claro, mas esses padrões não podem impedir que pessoas que não têm problemas sejam proibidas ou sancionadas por seus hábitos.
O segundo aspecto está ligado a um fenômeno geopolítico: a ‘guerra contra as drogas’ se constitui num mecanismo neocolonial de controle de matérias primas, que são utilizadas nos países centrais com grande demanda e são um dos mercados de drogas mais importantes do mundo. A presença imensa dos Estados Unidos na política de guerra às drogas se transformou numa espécie de diplomacia imperial que controla militarmente nações produtoras de matérias primas. O projeto de lei uruguaio é uma forma de questionar a ordem neocolonial e imperial internacional.
Finalmente, há um terceiro aspecto, que é propriamente científico. O uso de substâncias psicoativas é parte inseparável da própria condição humana. Está presente em todas as sociedades e não pode ser erradicado, extirpado, porque seria contrário aos próprios fundamentos da busca na flora e na farmácia de produtos que ajudem a vida humana. Do ponto de vista científico, inclusive, deve haver pleno espaço à pesquisa de substâncias ilícitas, que está hoje proibida.
O projeto de lei uruguaio tem apenas um artigo, que diz que o Estado passa a controlar todas as atividades relacionadas à maconha. Ou seja, a proposta é tirar uma das fontes de renda do narcotráfico. É uma iniciativa eficaz?
O projeto uruguaio é muito pertinente e bem-sucedido nessa intenção de colocar o Estado como único a poder produzir e comercializar no atacado a maconha, porque isso elimina o risco de que os grupos criminosos ligados ao narcotráfico se legalizem como empresas e, ao mesmo tempo, impede que grandes multinacionais, principalmente aquelas já ligadas ao comércio do tabaco e do álcool, se apossem desse novo mercado -- o que seria uma forma de estabelecer um estímulo contínuo ao aumento do consumo, porque as empresas vão querer aumentar o consumo para vender mais.
O Estado vai poder abastecer sem utilizar nenhum mecanismo publicitário, advertindo os consumidores sobre o risco e estabelecendo critérios restritos de acesso -- apenas a maiores de idade e em alguns lugares. A política de intervenção estatal é a melhor para a gestão de substâncias psicoativas e deveria ser estendido para o álcool e o tabaco também -- que, no meu entender, deveriam ser estatizados.
Agora, por último, essa estatização da produção e do grande atacado não deve impedir a iniciativa individual de autoplantio e autoabastecimento e de microcomércio, ou seja, a realização de feiras de apreciadores, que vão trocar cepas particulares de plantas -- como existe em relação ao vinho e à cachaça, por exemplo. Acho que os pequenos produtores, os gourmets do tema, deveriam ter livre espaço para desenvolver suas atividades. Mas no âmbito do grande comércio, da grande produção, é extremamente positivo que haja uma proposta de estatização.
Por que algumas substâncias são proibidas, como a maconha, e outras, como o álcool e o tabaco, não?
A explicação tem a ver com um conjunto de elementos que se somaram historicamente para promover essa distinção. É sobretudo de ordem cultural. A tradição dos países ocidentais ligados à expansão do cristianismo sempre admitiram o álcool como uma substância não só legítima para fins recreacionais, como uma substância sagrada. Então, o álcool ficou isento das condenações que plantas originárias de culturas mais periféricas tiveram no contato com a civilização ocidental.
A cristianização da América considerou como práticas idolátricas os usos tradicionais indígenas de uma série de drogas psicoativas, que foram a partir de então perseguidas. Isso ocorreu também com a maconha, que tinha uma origem oriental, ligada às culturas hindu e islâmica, e também a tradições africanas.: todas elas se chocaram com essa ordem cultural do ocidente cristão.
Há outros elementos, ligados ao uso econômico da cannabis, que sempre foi uma planta importante para a produção de papel, óleos, fibras têxteis e produtos farmacêuticos. Ela tinha um peso econômico enorme, que começou a ser objeto de concorrência com novos produtos oriundos das fibras sintéticas, do papel de celulose e da indústria farmacêutica. Houve um lobby contra os usos econômicos da maconha por parte dessas novas indústrias.
Finalmente, há um elemento também ligado à cultura, que é o racismo. Essa planta foi identificada nas sociedades ocidentais com populações de origem estrangeira: árabes, na Europa; africanos, no Brasil; e mexicanos, nos Estados Unidos. Então, isso serviu como pretexto xenofóbico de perseguição a minorias étnicas de outras origens.
A legalização e regulamentação das drogas é um caminho sem volta?
Será um caminho sem volta se a gente observar no futuro um aprofundamento das conquistas democráticas ligadas ao republicanismo laico e à garantia dos direitos humanos e civis que se estabeleceram há pouco mais de 200 anos na história ocidental e mundial. Se não houver uma reversão, ou seja, o advento de novos regimes fundamentalistas, ditatoriais, autoritários, se não houver esse retrocesso, certamente a conquista dos direitos dos consumidores de drogas vai se dar na mesma dinâmica que se deu com as opções sexuais. Razões semelhantes -- de origem religiosa e culturais -- impediam a existência de homossexuais, por exemplo, que continuam sendo criminalizados em muitos lugares do mundo.
Há uma espécie de conflito entre uma vocação democrática, republicana, laica, de ampliação dos direitos civis, e uma outra, que é de retrocesso fundamentalista, ligado a preconceitos de ordem religiosa e étnica. Espero que haja uma evolução progressiva que amplie cada vez mais a descriminalização e regulamentação de todas as substâncias psicoativas, da mesma forma como ocorreu com os alimentos. Os alimentos também sofriam com proibições de ordem religiosa, que depois passaram a ser obedecidas apenas pelos fiéis dessas religiões e não impostos ao conjunto da sociedade.