Sistema sensível aos compostos da maconha atua também nos rins, mostra estudo
Descoberta abre portas para desenvolvimento de remédios contra a hipertensão e cura de lesões renais.
Há não menos que cinco mil anos a Humanidade conhece as aplicações terapêuticas da maconha (Cannabis sativa) e seus derivados. Os chineses já a empregavam em medicina há milênios. Porém, até agora se acreditava que o sistema do corpo humano sensível aos compostos da maconha agia primordialmente no cérebro. Cientistas brasileiros, porém, descobriram que o chamado sistema endocanabinoide atua sobre os rins, um achado que abre a possibilidade de desenvolver remédios contra a hipertensão e curar lesões renais, estas sem tratamento além da diálise e do transplante de rins.
O grupo dos professores Marcelo Einicker-Lamas e Ricardo A. M. Reis, ambos do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, da UFRJ, trabalhou com versões sintéticas de endocanabinoides, substâncias produzidas pelo próprio corpo. O trabalho iniciado com a tese de doutorado de Luzia Sampaio, hoje pós-doutouranda na UFRJ, levou a uma descoberta que chamou a atenção da comunidade científica por revelar uma frente nova da ação dos endocabinoides. O trabalho está na edição on-line de uma das revistas mais conceituadas da área, a “British Journal of Pharmacology”. Luzia almejava saber se era possível tratar lesões renais ao ativar o sistema endocanabinoide.
— O que vimos ia muito além disso. O sistema controla a bomba de sódio e potássio do organismo, uma enzima ativa nos rins, muito importante para o controle da pressão sanguínea. Estimulada por canabinoides diferentes, ela pode aumentar ou reduzir a atividade, mudando a pressão. Esse achado foi tão importante que a tese acabou voltada para ele — explica Einicker-Lamas, especialista em biologia da sinalização celular, chefe do Laboratório de Biomembranas e orientador da tese.
Os endocanabinoides modulam a ação da enzima sódio e potássio ATPase. Essa enzima de nome complicado também é chamada de bomba de sódio e potássio. É uma das grandes reguladoras do corpo humano. Ela tem papel fundamental na absorção do sódio (sal). Graças a sua ação, o sódio em excesso — que leva à hipertensão — pode ser excretado pela urina ao passo que outras substâncias importantes, como aminoácidos e glicose, são absorvidas.
CHANCE CONTRA TRANSPLANTE
Se essa enzima não funciona bem, mais sódio é absorvido. Em linhas gerais, o resultado é o aumento da pressão sanguínea. A hipertensão lesiona os rins ao longo de anos, silenciosamente. Quando o problema é descoberto, quase sempre já é tarde demais e restam as opções paliativas de diálise e, nos casos mais graves, de transplante.
O sistema endocanabinoide tem receptores, ou fechaduras, nas células. Alguns canabinoides são chaves que abrem a fechadura. Outros, chaves somente para fechar. O momento eureca é encontrar a chave certa para cada ocasião. Marcelo Lamas e Luiza testaram as chaves em culturas de células humanas.
Quando as células eram expostas a um canabinoide sintético chamado win (derivado do endocanabinoide natural anandamida), a bomba de sódio e potássio era estimulada — uma frente de estudo potencial para o tratamento da pressão baixa. Porém, quando o canabinoide empregado era a hemopressina — um peptídeo, ou pedaço de proteína, derivado da hemoglobina — o oposto ocorria. A bomba tinha sua atividade muito reduzida.
— Interferir nesse sistema pode combater a hipertensão, porque essa enzima é fundamental para o funcionamento dos rins. É uma nova via para a indústria de medicamentos — afirma Lamas.
Segundo o pesquisador, não se pode afirmar nada ainda em relação aos fumantes ou usuários de extratos de maconha, até porque o principal princípio ativo da planta (o THC) estaria misturado a outras dezenas e até centenas de compostos, o que poderia implicar numa menor quantidade de canabinoides para o sistema estudado nos rins.
O próximo passo dos cientistas da UFRJ será investigar se os endocanabinoides podem ser aliados no tratamento de lesões renais variadas — de pedras nos rins a danos graves para os quais a única opção hoje é o transplante, nem sempre com bons resultados. Este é o tema do trabalho de pós-doutorado desenvolvido por Luzia.
— Para nossa surpresa, o sistema endocanabinoide é mais essencial e difundido pelo organismo do que imaginávamos. Pode ter muitas funções, todas importantes, em vários órgãos — destaca Lamas, cujas pesquisas estão parcialmente paralisadas devido aos cortes de verbas da Capes.
ESPERANÇA CONTRA DOENÇAS INCURÁVEIS
O uso de canabinoides contra doenças neurológicas é o foco do estudo de Ricardo Reis. No Laboratório de Neuroquímica, ele tem feito descobertas sobre esclerose lateral amiotrófica (ELA) e outras doenças chamadas desmielinizantes. Elas surgem quando o corpo para de produzir mielina, essencial para a comunicação de sinais nervosos. É a falta de mielina que faz com que o cérebro de pessoas com ELA deixe de comandar os músculos. Hoje, há só paliativos, mas não cura.
Reis descobriu que o canabinoide hemopressina aumenta a produção de mielina. Esta é liberada por um tipo de célula do cérebro chamada oligodendrócito. Em pessoas com ELA e doenças semelhantes, os oligodendrócitos são incapazes de atender às necessidades do organismo.
— A hemopressina aumenta em até três vezes o número de oligodendrócitos. É muita coisa — destaca Reis, que fez o estudo em colaboração com a Universidade de Coimbra.
O trabalho rendeu uma patente, dada a possibilidade de produzir um medicamento.
— A hemopressina se liga ao receptor CB1 do sistema endocanabinoide, o mesmo ativado pela maconha — explica Reis, que, como muitos outros pesquisadores, defende a descriminalização da maconha.
Com o grupo de Coimbra, ele viu que um derivado da anandamida abre a fechadura e leva à produção de mais neurônios. Já a hemopressina fecha o receptor CB1. O resultado são mais oligodendrócitos e, logo, mais mielina.
— Uma droga sintética poderia modular esse sistema. Não acho que consumir a maconha pura funcione nesse caso, porque ela tem outras substâncias e não oferece a concentração adequada dos canabinoides para o tratamento — salienta o cientista.
A HISTÓRIA DA ERVA: AÇÃO NO CORPO E NA MENTE
O pioneiro na pesquisa sobre a ação terapêutica da maconha é o químico isralense Raphael Mechoulam. Nos anos 60, quando trabalhava no Instituto Weizmann de Ciência, em Israel, ele convenceu a polícia a lhe ceder para estudo cinco quilos de maconha apreendida. Isolou e sintetizou os compostos da planta. Descobriu dois elementos-chave. O primeiro é o THC, a sigla para tetrahidrocannabidiol, associado aos efeitos da maconha no cérebro. Mechoulam também isolou o cannabidiol (CBD), que tem múltiplos usos em medicina, mas nenhum efeito psicoativo.
Nos anos 90, foram identificados os receptores da maconha nas células humanas. São parte do sistema endocanabinoide, integrado ainda por substâncias produzidas pelo corpo e com efeitos semelhantes. Nos anos 2000, o grupo de Emer Ferro, da USP, descobriu que peptídeos têm ação canabinoide e se ligam aos receptores. A hemopressina é um deles.