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FHC diz: - O Congresso e os partidos não acompanharam o avanço do debate sobre drogas

Maconha no BrasilA política de drogas baseada na proibição indiscriminada de todas as substâncias e na criminalização de todo e qualquer uso de drogas é acima de tudo um fracasso. Décadas de “guerra às drogas” não reduziram nem a produção nem o consumo. As drogas podem fazer mal à saúde, mas a repressão tem consequências ainda mais desastrosas: violência, corrupção, fortalecimento do crime organizado, violação de direitos, dificuldade de acesso ao tratamento, ineficácia das ações de prevenção.

Qual seria o melhor modelo de descriminalização para o Brasil?

As drogas são um problema complexo, que não tem modelo único de abordagem nem solução simples. O ponto de partida para políticas mais humanas e eficientes é tratar o problema como uma questão de saúde pública. O usuário de drogas não é um criminoso a ser encarcerado. Nos casos de dependência, é uma pessoa que precisa de tratamento. No caso de drogas mais leves, como a maconha, formas de regulação similares às que já existem em relação ao álcool e ao tabaco são maneiras muito mais eficientes de reduzir o dano provocado pelas drogas.

E o que pensa em relação à regulação da produção de drogas?

Regulação não é sinônimo de liberalização ou de legalização. Regular quer dizer retirar as drogas das mãos do crime organizado e submetê-las ao controle do Estado. Diferentes drogas requerem tipos distintos de regulação. É a regulação que abre caminho para a imposição de limites e restrições ao uso das drogas de acordo com o dano que causam às pessoas e à sociedade. A regulação permite estabelecer idade mínima para consumo, teor da substância ativa, locais permitidos e proibidos para uso e, acima de tudo, permite disseminar informações sobre os riscos e onde procurar ajuda nos casos de abuso e dependência.

As ideias que hoje defende são diferentes das que defendia quando presidente. O que o fez mudar de opinião?

Só os obtusos não mudam de opinião. Há 20 anos não estava claro que o objetivo de um mundo sem drogas era irrealizável. Tampouco dispúnhamos, como dispomos hoje, de um número crescente de experiências bem-sucedidas de abordagem das drogas como problema de saúde pública e de redirecionamento da ação policial contra o crime organizado, o contrabando de armas e a lavagem de dinheiro. Drogas não são mais um tema tabu como no passado.

O que pensa da prisão de cultivadores de maconha em residências que vêm sendo enquadrados como traficantes?

Penso que é fundamental diferenciar o cultivo da maconha para uso pessoal do tráfico de drogas. A classificação da maconha como uma droga tão nociva quanto à heroína ou a cocaína não tem fundamento científico. Faz muito mais sentido tratar a maconha como se trata o álcool e o tabaco, substâncias que não são ilegais, mas estão submetidas a uma série de controles e limites.

Estabelecer uma quantidade que diferencie usuários e traficantes ajuda?

Ajuda a tirar a subjetividade da decisão do policial, mas não pode ser o único critério a ser analisado. Deve se somar às outras variáveis da investigação, pois senão poderia causar ainda mais encarceramento indevido do que temos hoje. O critério da quantidade precisa ser pensado de acordo com a realidade do consumo. Portugal prevê a quantidade estimada para dez dias de consumo e tem funcionado bem. O México estabeleceu quantidades muito pequenas e agravou a situação carcerária do país.

Há quem defenda que avançar nas regras referentes à maconha é um primeiro passo. Outros dizem que isso enfraqueceria o debate relacionado às outras substâncias ilícitas. Qual a sua posição?

A abordagem proibicionista só interessa ao crime organizado, que se fortalece na ilegalidade. A alternativa a esta política repressiva não é legalização e sim a regulação de diferentes drogas, segundo o risco que causam à saúde das pessoas e à segurança da sociedade. Começar com a experimentação de novas políticas de regulação pela maconha faz sentido diante das pesquisas e experiências que já existem.

Embora experiências já usem a redução de danos há 20 anos, a estratégia ainda não é adotada pelo governo de forma centralizada. O que acha disso?

É essencial avançar com políticas de redução de danos no país. Pesquisas e experiências nacionais e internacionais demonstram que a redução de danos é uma estratégia mais humana e eficiente para os usuários problemáticos de drogas e para a sociedade como um todo. A abstinência não pode ser a única métrica de sucesso das políticas de drogas, em alguns casos isso nunca será atingido. A redução de danos permite uma abordagem realista e progressiva do problema, na qual a meta é a reinserção do dependente de drogas na sociedade e a melhoria do seu bem-estar.

O Congresso hoje tem uma forte presença de setores contrários a essas ideias, como evangélicos e ex-policiais e militares. Qual o impacto disso no avanço dessas medidas?

A discussão sobre políticas mais humanas e eficientes, que ponham a saúde em primeiro lugar e priorizem a luta contra a violência e o narcotráfico, avançou muito na mídia e nas redes sociais. O Congresso e os partidos não acompanharam o avanço do debate na sociedade. Neste momento, o Supremo Tribunal Federal poderia dar um passo adiante e julgar o Recurso Extraordinário que tira o consumo de drogas da esfera criminal. Assim, ajudaria a vencer o impasse sobre o tema, e o Brasil começaria a se mover na direção correta.

O assunto é evitado por políticos brasileiros, inclusive do PSDB, mesmo em momentos não eleitorais. É factível pensar num avanço dessas ideias via representantes?

Novos valores e comportamentos tendem a se afirmar na sociedade onde, cada vez mais, as pessoas tomam decisões informadas e responsáveis. A mídia e as redes sociais amplificam e legitimam o debate, que é o melhor caminho para vencer os preconceitos dos setores mais reticentes às mudanças.

Um argumento dos críticos à flexibilização em torno das drogas é que o país “não está preparado”. O que acha disso?

Nas sociedades abertas, há uma tensão permanente e fecunda entre inovação e conservação. São as inovações que transformam as instituições. Foi a consciência na sociedade da necessidade de um enfrentamento sem preconceitos da questão da Aids que levou o governo e o Congresso a implantarem um programa que hoje é reconhecido internacionalmente. Frente a novos desafios, temos que ser ousados e pragmáticos. Ousados para inovar e experimentar, pragmáticos para avançar passo a passo, criando as condições para que o necessário seja possível.

A América Latina tem altos níveis de violência associadas ao tráfico de drogas ilícitas. Os esforços com leis e modelos de regulação de drogas na região têm sido suficientes?

Vários líderes da América Latina têm sido fundamentais para a discussão política sobre as graves consequências das políticas repressivas em nossa região, no âmbito das Nações Unidas. Mas ainda não somos a região mais avançada no que tange a mudanças de políticas públicas e experiências em grande escala. Na prática, podemos apontar os esforços de ONGs, governos locais e estaduais, além de centros de pesquisas, mas os governos nacionais ainda não avançaram na construção de políticas de drogas integradas. A Europa é a região mais avançada nesse sentido.

Em 2016, será realizada a sessão especial da Assembleia-Geral das Nações Unidas sobre o tema. O que esperar da posição do Brasil?

Foram países latino-americanos, como México, Colômbia e Guatemala, que lideraram a convocação da sessão especial a se realizar em 2016. A Comissão Global de Políticas sobre Drogas tem grandes expectativas de que a voz do Brasil se fará ouvir com força na construção de um novo consenso internacional sobre políticas de drogas voltadas para a promoção da saúde, da segurança e dos direitos humanos.

FONTE: http://oglobo.globo.com/sociedade/o-congresso-os-partidos-nao-acompanharam-avanco-do-debate-sobre-drogas-diz-fh-15940476