Professora e coordenadora do grupo de pesquisas em Política de Drogas e Direitos Humanos da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Luciana Boiteux avalia que o atual modelo de combate às drogas está superado e que é hora de construir passo a passo políticas que tenham como foco os direitos humanos e levem em conta o desejo do usuário.
Como analisa o atual modelo de controle de drogas?
O modelo proibicionista de controle falhou. É uma constatação baseada nos dados que a própria ONU coleta. A meta definida em 1988 era a de um mundo livre de drogas, acreditava-se que seria possível proteger a saúde pública e minimizar o consumo e o lucro desse mercado via modelo proibicionista, que reprime criminalmente usuários e traficantes. O que vemos, porém, é que em nenhum aspecto esse modelo teve o sucesso esperado. No Brasil e em outros países em desenvolvimento, a realidade é pior: em vez de minimizar danos, essa formulação acarretou consequências nefastas. Baixa qualidade das drogas em circulação, situação de vulnerabilidade dos usuários, superlotação de prisões com indivíduos que não necessariamente são traficantes. A violência no Rio mostra que o mercado de drogas tem grande poder, abalado por essa repressão ocasional, mas que depois tende a se fortalecer. A proibição torna esse mercado altamente lucrativo.
Por outro lado, não há consenso sobre alternativas, o que explicita a complexidade da questão.
No âmbito da política criminal, não há consenso, mas no da política de saúde, sim. Deve-se investir em prevenção, em informação… Os usuários que queiram ajuda precisam ser apoiados pelo Estado — uma intervenção social, não policial. O Brasil avançou bastante nesse sentido.
Mas ainda se questiona a redução de danos.
A redução de danos é um novo paradigma, porque não trabalha com a ideia da abstinência como única meta aceitável e, sim, com a de apoio a medidas que minimizem os danos. Esse pensamento avança no sentido da saúde publica e do respeito à liberdade do usuário. O Brasil acertou ao romper com visões mais conservadoras, como a ainda aplicada nos Estados Unidos, que impõem tratamento obrigatório se o usuário não quiser ir para a prisão. Essa prática vai contra a opinião de especialistas, que claramente dizem que a vontade pessoal de deixar as drogas é o primeiro passo.
A justiça terapêutica é inconstitucional, porque não respeita o desejo do usuário, não é coerente e aceitável. A política de redução de danos não exclui outras opções de tratamento, nem mesmo a busca da abstinência. Do ponto de vista criminal, o mais próximo do consenso é a descriminalização do usuário, como Portugal fez muito bem. Quando se fala em despenalizar, o objetivo é que não se tenha mais a pena de prisão. Descriminalizar é mais forte: retirar a questão do direito penal e passá-la pra outra esfera — Portugal passou para a esfera administrativa.
Sempre será necessário algum tipo de controle?
Eu não defendo a ausência de controle, mas uma mudança na natureza do controle. A estigmatização decorrente do modelo proibicionista traz danos grandes até para a saúde, porque dificulta a intervenção social do Estado. O peso do crime sobre as drogas ilícitas é muito ruim.
Como definir que drogas descriminalizar?
É uma definição política. Portugal descriminalizou todas as drogas, mas poderíamos pensar num modelo intermediário, começando pela descrimalização de drogas leves como a maconha.
Não é contraditório que Portugal e Holanda, por exemplo, tenham descriminalizado o consumo, mas não a produção?
É importante esclarecer que a Holanda não descriminalizou as drogas, despenalizou o usuário. O crime continua previsto em lei, mas os operadores decidiram focar determinadas condutas e tolerar outras. O usuário é tolerado, assim como a venda. Considera-se a Holanda um país permissivo, mas o que não se entende é que tomou decisão pragmática: em vez de perder tempo com pequenos traficantes e usuários, atua sobre os grandes traficantes. Deveríamos avançar mais, buscar outras modalidades de controle que não o penal, mas não há exemplo de país que já tenha conseguido.
Há espaço no Brasil para mudanças em médio prazo?
Tenho visto a atuação de organizações não governamentais, da mídia e de parlamentares no sentido de tirar essa discussão pública do limbo. Há clima social para descriminalizar o usuário, mas isso depende de decisão política. O momento é de levar à frente o debate com base em evidências, fugir da ignorância que vigorava até a década passada, que espalhava o medo das drogas. Não vamos descriminalizar as drogas de uma hora para outra, mas podemos encontrar modalidades de superar o atual modelo.
FONTE: http://www.cbdd.org.br/blog/2013/10/09/por-uma-nova-politica-em-relacao-as-drogas-ilicitas/