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Maconha na Índia - Fernando Gabeira

É razoável admitir que os seres humanos tenham escolhido o segredo das plantas como uma das maneiras auxiliares de explorar o mistério divino. Elas vivem enraizadas na terra e se alimentam dos céus. Obras que traçam a história da planta, como o Grande Livro da Cannabis,8 já mencionado, localizam a presença da maconha nas principais religiões antigas, ora utilizada secretamente por sacerdotes que temem sua difusão entre as massas, ora como um instrumento ao alcance de todos os seguidores.

As referências mais antigas da relação entre maconha e religião se encontram na Índia. Na religião hindu, a maconha está associada a Shiva, a mais paradoxal e completa figura de trindade. Shiva teria brigado com a família e estaria vagando nos campos quando, para buscar abrigo do sol, parou sob uma planta de canábis, esmagou suas folhas e comeu. Um documento colonial inglês sobre a maconha na Índia (Relatório da Comissão Indiana Para Drogas do Cânhamo)9 afirma que a crença hindu era de que aquele que bebe bangue (o nome da canábis) bebe Shiva. "A alma em que o espírito do bangue encontra morada desliza para um oceano do Ser, livre do extenuante círculo de matéria em que se cegou."

O mesmo documento, um apêndice do relatório escrito por J.M. Campbell, adverte os colonizadores: "Proibir ou mesmo restringir seriamente o uso de uma erva tão benigna quanto o cânhamo causaria sofrimento e irritação generalizados e, para amplos grupos de ascetas venerandos, uma cólera profundamente arraigada. Seria roubar do povo um consolo no desconforto, uma cura na doença, um guardião cuja compassiva proteção os livra de ataques de influências malignas e cujo grande poder faz do devoto um vitorioso, superando os demônios da fome e da sede, do pânico, do medo, do feitiço de Maia ou da matéria e da loucura, capaz de meditar em paz no Eterno, até que o Eterno, possuindo-o corpo e alma, o liberte da obsessão do eu e o receba no oceano do Ser".

Essas crenças o devoto maometano partilha plenamente. Como seu irmão hindu, o faquir muçulmano reverencia o bangue como aquele que prolonga a vida, que liberta das cadeias do eu. O bangue traz a união com o Espírito Divino. Tomamos bangue, e o mistério "Eu sou Ele" fica claro. "Tão grande resultado, tão minúsculo pecado."

Para quem não se interessa por termos como espírito divino, oceano do Ser, feitiço de Maia e outras expressões da religião oriental, abre-se um outro caminho fascinante: o de comparar Shiva e a canábis e constatar que, às vezes, parecem feitos um para o outro. Wendy Doniger escreveu um longo ensaio mostrando que se tratava de uma divindade ao mesmo tempo erótica e ascética, combinando duas pulsões essenciais e antagônicas no ser humano.10 As inúmeras versões do mito de Shiva servem para confirmar sua imprevisibilidade. Em quase todas as imagens que aparece, está com o pênis ereto. Alguns de seus seguidores vêem nisso um sintoma de pureza, pois a ereção indica que ele não verteu seu sêmen sagrado. Em certos momentos, entretanto, aparece dizendo que busca uma parceira que se entregue à meditação, como um grande mestre, mas que seja amante lasciva na cama do casal.

Essa ambivalência divina parece ter sido transmitida à maconha. Ela é acusada por seus adversários de reduzir a performance sexual e por seus defensores de ser uma erva afrodisíaca. Qualquer cientista sensato trabalharia a hipótese de que a maconha é inócua, logo pode ser considerada ora afrodisíaca, ora redutora, dependendo da vontade do observador.

Há, no entanto, um certo consenso de que a maconha retarda o orgasmo, e nesse ponto ela se mostra digna de sua associação mítica com Shiva. Muitos religiosos que seguem a linha kundalini da ioga, utilizando ou não a canábis, transformam o sexo numa relação ritual e longa, que às vezes dura todo um dia. Alguns pura e simplesmente retardam o orgasmo por horas. Outros negam o orgasmo como objetivo final e o substituem por uma sensação de unidade com o outro. Em ambos os casos, podemos imaginar Shiva com seu pênis ereto e lembrar a ambivalência da cultura hindu, para a qual a ereção simboliza também a castidade.

FONTE: http://www.diariodaerva.com/2010/03/dizer-maconha-e-espalhar-um-rastro-de.html