Estudo da UFSC engrossa lista de benefícios que substância presente na planta pode proporcionar à saúde humana. Experimentos mostram que composto é eficaz no tratamento de memórias traumáticas.
FOTO: Plantação de ‘Cannabis sativa’. Pesquisa mostra que substância extraída da planta pode ser eficaz para tratar sequelas emocionais causadas por traumas (foto: Wikimedia Commons/ Bogdan – CC BY-SA 3.0)
Uma erva conhecida pela humanidade há mais de 4 mil anos e que temuma série de aplicações medicinais comprovadas se mostrou promissora também no tratamento de sequelas emocionais causadas por traumas. O efeito é produzido pelo canabidiol, substância presente namaconha (Cannabis sativa) e que pode substituir vários medicamentos usados em tratamentos psicológicos, evitando seus efeitos colaterais.
O potencial de uso de C. sativa para a atenuação de traumas foiapontado recentemente pela equipe liderada pelo farmacologista Reinaldo Takahashi, no Laboratório de Psicofarmacologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Os pesquisadores utilizaram um modelo experimental comum em estudos que trabalham com estresse pós-traumático, que consiste em provocar traumas em camundongos por meio de choques elétricos sutis nas patas.
“Além de não produzir melhora clínica em todos os pacientes, os medicamentos hoje disponíveis podem causar efeitos colaterais”
“Quando colocado novamente noambiente em que levou o choque, mesmo vários dias após o trauma, oanimal responde autonomamente com um estado de ‘congelamento’, ou seja, fica imóvel”, conta Takahashi. Em termos neurológicos, a resposta é amesma apresentada por uma pessoaque, após ser assaltada ou sofrer umacidente de trânsito, sente medo ao passar pelo local onde enfrentou asituação traumática.
Para tratar esse tipo de transtorno, geralmente o paciente é exposto várias vezes ao mesmo ambiente e deixa de ter sintomas de ansiedade com a ajuda de antidepressivos. “Mas, além de não produzir melhoraclínica em todos os pacientes, os medicamentos hoje disponíveis podem causar efeitos colaterais”, diz o pesquisador.
No laboratório da UFSC, o doutorando em farmacologia Rafael Bitencourt descobriu que, ao receber doses de canabidiol, animais com memória traumática tiveram os sintomas de ansiedade reduzidos graças à interação entre o sistema corticosteroide, importante na regulação do metabolismo, com o sistema endocanabinoide.
A produção, pelo cérebro, de substâncias endocanabinoides (que têm esse nome por se assemelhar a componentes da maconha, mas de origem endógena) é que facilitaria o processo de reaprendizado emocional. Takahashi explica ainda que o canabidiol não tem os efeitos colaterais dos medicamentos utilizados hoje no tratamento de traumas.
FOTO: Pesquisador faz teste de condicionamento com camundongo no Laboratório de Psicofarmacologia da UFSC. Animais com memória traumática tratados com doses de canabidiol tiveram os sintomas de ansiedade reduzidos (foto: Thiago Silva/ UFSC).
Segundo o pesquisador, desde a Antiguidade há relatos de usuários de maconha sobre os efeitos do canabidiol na extinção de memórias aversivas, o que direcionou algumas investigações farmacológicas.
“Em um congresso internacional recente ouvi relatos de veteranos de guerra norte-americanos sobre melhora no quadro de transtorno de estresse pós-traumático quando fumavam maconha”, conta. Mas ele ressalta que, como ex-combatentes podem usar várias drogas simultaneamente, não é possível dizer se o efeito é consequência diretade C. sativa.
Pesquisas com maconha
Estudos feitos em diversos países apontam que o canabidiol, que representa mais de 40% dos extratos de C. sativa, é eficaz no tratamento de depressão, esquizofrenia, epilepsia, transtorno bipolar e até leucemia e doenças neurodegenerativas, como mal de Alzheimer, além de ajudar aconter inflamações e controlar a pressão arterial.
"O canabidiol é eficaz no tratamento de depressão, esquizofrenia, epilepsia, transtorno bipolar e até leucemia e doenças neurodegenerativas"
Os efeitos psicoativos da maconha, que alteram temporariamente apercepção, o humor, o comportamento e a consciência de quem a consome, estão ligados sobretudo a outro canabinoide presente na erva: o tetraidrocanabinol (THC, na sigla em inglês).
Mas mesmo o THC apresenta efeitos de interesse medicinal. O Sativex, medicamento indicado no tratamento de esclerose múltipla, lançado em 2005 no Canadá, por exemplo, tem como princípio ativo uma combinação de THC e canabidiol. Outros dois medicamentos que utilizam o princípio ativo da maconha ajudam pacientes a conter náuseas e vômitos durante tratamentos quimioterápicos.
Na UFSC, além do efeito contra memórias traumáticas, Takahashi orienta estudos com o canabidiol que avaliam o potencial da substânciano tratamento de dependência de morfina e na proteção do sistema nervoso em animais com doença de Parkinson.
Restrições
“Considerando que C. sativa tem cerca de 400 constituintes químicos emais de 80 fitocanabinoides, é possível identificar outros compostos de interesse farmacológico”, diz o pesquisador. Mas ele ressalta que a dificuldade de trabalhar com substâncias psicotrópicas impede que pesquisas com outros compostos da maconha avancem no nosso país.
“As exigências para importar essas substâncias de países onde aprodução é permitida são tão grandes, que muitos pesquisadores na área de drogas de abuso desistem de trabalhar com certos compostos”, diz Takahashi. “No caso do canabidiol, o aspecto crucial que permite sua importação é o fato de ele não ser considerado psicoativo.”
No Brasil, a lei 11.343, de 2006, proíbe “em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas”. Conforme a legislação, a União pode autorizar o cultivo de maconha “exclusivamente para fins medicinais ou científicos”, “em local e prazo predeterminados” e “mediante fiscalização”.
por Célio Yano - Ciência Hoje On-line/ PR