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Inconstitucionalidade material do delito de porte de drogas para uso pessoal é reconhecida pela Quarta Turma de Recursos de Criciúma (SC)

Maconha no BrasilA Quarta Turma de Recursos de Criciúma/SC reconheceu, por maioria, a inconstitucionalidade material sem redução do texto do delito de porte de drogas para consumo próprio nos autos da Apelação Criminal n. 2015.400069-1. O referido órgão colegiado considerou a conduta atípica, com fundamento nos princípios da alteridade, da isonomia, da inviolabilidade da intimidade e da vida privada e da dignidade da pessoa humana.

Em irretocável decisão, o Voto de Relatoria do Juiz de Direito Mauricio Mortari, destacou que

É evidente que tanto as drogas ilícitas como as lícitas são nocivas à saúde, a depender evidentemente da frequência, modo e forma de uso das substâncias, não sendo viável pensar que o Direito Penal é meio eficaz para impedir que aquelas continuem a ser usadas por parcela da população, sobretudo porque é ilusão imaginar que algum dia as drogas serão banidas em definitivo, ou seja, que haverá um vitorioso nessa “guerra”. Como anota Foucaut (…) as drogas são parte de nossa cultura. Da mesma forma que não podemos dizer que somos ‘contra’ a música, não podemos dizer que somos ‘contra’ as drogas.

Com isso não se quer dizer que se esteja aqui fazendo apologia ao uso de drogas – até porque convicções pessoais do juiz devem passar à margem da decisão –, mas apenas trazendo à compreensão que os problemas envolvendo a dependência em drogas (lícitas ou ilícitas) não são combatidos com repressão, já que o Direito Penal nem de longe serve como política de saúde pública.

Afinal de contas uma realidade é inegável, qual seja, o “combate” ou a “guerra” contra as drogas através da repressão penal – que reprime fabricantes, distribuidores e consumidores – já ocorre há vários anos, jamais surtindo o efeito desejado que era colocar fim ao problema, tanto que naufragou de modo evidente a intenção da Organização das Nações Unidas que em 1998, tomada por delirante euforia, prometia um mundo sem drogas em dez anos.

Bem lembrado o pensamento atribuído a Albert Einstein, citado na decisão, de que não há maior demonstração de insanidade do que fazer a mesma coisa, da mesma forma, dia após dia, e esperar resultados diferentes.

Confira abaixo a íntegra da decisão.


Apelação Criminal n. 2015.400069-1

Relator: Juiz Mauricio Mortari

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APELAÇÃO CRIMINAL. CONDENAÇÃO POR PORTE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE PARA USO PRÓPRIO. ART. 28 DA LEI DE DROGAS. PROVA SUFICIENTE DA AUTORIA E DA MATERIALIDADE. NÃO OBSTANTE, TRATA-SE DE CONDUTA ATÍPICA EM FACE DA INCONSTITUCIONALIDADE DA NORMA INCRIMINADORA. PROTEÇÃO À SAÚDE PÚBLICA QUE NÃO PODE SER PROMOVIDA PELO DIREITO PENAL, MORMENTE PORQUE A CONDUTA EM ANÁLISE ATINGE SOMENTE A SAÚDE DO USUÁRIO DE DROGAS. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ALTERIDADE, SEGUNDO O QUAL A AUTOLESÃO NÃO É PUNÍVEL. PREVALÊNCIA DO DIREITO FUNDAMENTAL QUE PROTEGE A INVIOLABILIDADE DA INTIMIDADE E DA VIDA PRIVADA (ART. 5º, X, DA CF). OFENSA AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL ISONOMIA EM FACE DA AUSÊNCIA DE LEGITIMIDADE NA DISTINÇÃO ENTRE OS CONSUMIDORES DE DROGAS LÍCITAS E ILÍCITAS, MESMO PORQUE A CRIMINALIZAÇÃO NÃO SE MOSTRA EFICAZ COMO MEIO DE EVITAR O CONSUMO DE TAIS SUBSTÂNCIAS. APLICAÇÃO SELETIVA DO DIREITO PENAL A PONTO DE OFENDER O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. DIANTE DOS DIVERSOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS VULNERADOS, POSSÍVEL O RECONHECIMENTO DA INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL SEM REDUÇÃO DO TEXTO DO ART. 28 DA LEI N. 11.343/06. RECURSO PROVIDO PARA ABSOLVER O ACUSADO.

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Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal nº 2015.400069-1, da Comarca de Sombrio (2ª Vara), em que é recorrente J.R. da S., e recorrido o Ministério Público de Santa Catarina.

ACORDAM, em sessão da Quarta Turma de Recursos, por maioria, conhecer do recurso e dar-lhe provimento para absolver o acusado, vencido o Juiz Edir Josias Silveira Beck que votou pela manutenção da condenação.

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RELATÓRIO

Dispensado o relatório ex vi do artigo 46 da Lei 9.099/95.

VOTO

Imputa-se ao agente a infração de porte de substância entorpecente para consumo pessoal, conduta típica prevista no art. 28 da Lei Antitóxicos, in verbis:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I – advertência sobre os efeitos das drogas;

II – prestação de serviços à comunidade;

III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Cabe ressaltar de plano que a materialidade do pretenso delito encontra-se positivada no Termo de Apreensão de fls. 2, Laudo Preliminar de Constatação de fls. 5 e, finalmente, no Laudo Pericial encartado às fls. 40/43, pois a substância entorpecente periciada pode causar dependência física e/ou psíquica – estando seu uso proibido em todo o território nacional – segundo a Portaria n. 344/98 da Secretaria da Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde (atualizada pela RDC n. 6/2014).

Noutro giro, não há dúvida acerca da autoria da posse da pequena quantidade de maconha apreendida nos autos (03 centigramas), pois o acusado confessou que trazia o “baseado” para seu consumo pessoal, fato confirmado pela prova oral produzida em juízo.

Portanto, a rigor seria caso de manter a sentença incólume, até porque em nenhum momento falou-se nos autos que a droga apreendida com o acusado serviria à traficância como foi afirmado no recurso, que neste aspecto está distanciado de tudo que foi discutido nestes autos.

Não obstante tais circunstâncias – prova inconteste da autoria e da materialidade –, parece possível e necessário um novo enfoque sobre a questão, sobretudo porque é manifesta a atipicidade da conduta de portar drogas para consumo próprio.

Anote-se, de início, não ser desconhecido o entendimento de que as condutas enumeradas na norma legal mencionada são majoritariamente consideradas, ao menos em tese, típicas e puníveis.

Essa é a posição defendida por Damásio de Jesus[1], além do que consta da jurisprudência das Turmas Recursais deste Estado[2]:

APELAÇÃO CRIMINAL. ENTORPECENTES. INFRAÇÃO PREVISTA NO ART. 28, CAPUT, DA LEI 11.343/2006. TRAZER CONSIGO ENTORPECENTE PARA CONSUMO PRÓPRIO. PORTE DE MACONHA. PORTE DE MACONHA. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. DENÚNCIA REJEITADA POR CARÊNCIA DE AÇÃO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. A Lei n.º 11.343/06, em relação a posse de drogas para uso próprio (art. 28), tem natureza jurídica de crime, apesar da não previsão de pena de reclusão ou detenção, isolada, cumulativa ou alternativamente com multa, pois tem o interesse de educar o usuário, advertindo-o acerca dos malefícios causados, prescrevendo o comparecimento a programa ou curso educativo e ainda, prestação de serviços a comunidade.

Também não passa desapercebido o entendimento que considera inaplicável o princípio da insignificância na hipótese vertente, ainda que pequena a quantidade da droga apreendida, isso em face do que vem decidindo de modo reiterado a 4ª Turma de Recursos, compreensão representada aqui na Apelação Criminal n. 2013.401024.9, de Tubarão, Relator: Juiz Pedro Aujor, assim ementada:

APELAÇÃO CRIMINAL. PORTE DE MACONHA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. DENÚNCIA REJEITADA. PORTE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. COCAÍNA APREENDIDA EM PEQUENA QUANTIDADE. INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA, CONSIDERADO O ALTO POTENCIAL OFENSIVO DO DELITO E O CUNHO PREVENTIVO DA NORMA AO CASO APLICÁVEL (ART. 28 DA LEI N. 11.343/06). MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. RECURSO NÃO PROVIDO.

“O legislador, ao editar a Lei 11.343/06, não descriminalizou propriamente a conduta do usuário de drogas. Optou, outrossim, por abrandar as sanções cominadas àquele que as guarda para uso próprio, aplicando-lhe medidas de cunho educativo. Isto porque, além dos malefícios que a substância entorpecente acarreta ao próprio usuário, seu uso coloca em risco toda a coletividade, por efeitos diretos e indiretos. Por isso, mesmo a pequena quantidade da droga apreendida não descaracteriza o tipo penal respectivo (art. 28 da Lei n. 11.343/06).” (Apelação Criminal n. 2012.200634-8, da Comarca de Gaspar, Relatora: Juíza Quitéria Tamanini Vieira Péres, j. 18.09.2012). Doutro vértice, não há consenso científico se há de fato e qual seria uma quantidade segura para o consumo de substância entorpecente, esta a razão pela qual o legislador sabiamente não estabeleceu qualquer liame entre a conduta típica (que na verdade não é o uso, mas o porte) e a quantidade apreendida, não sendo possível distinguir aonde o legislador não distinguiu, justamente pela ausência de critérios científicos para tal, prevalecendo também por esta razão o conteúdo da norma. RECURSO PROVIDO.

O primeiro aspecto que deve ser abordado diz respeito à ausência de lesividade a direito de terceiros, não sendo possível para justificar a criminalização da conduta de portar entorpecentes adotar o discurso cômodo e simplista da lesão à “saúde pública” ou mesmo que se trata de um delito de perigo abstrato, conforme vem decidindo o e. Superior Tribunal de Justiça[3]: (…) Não merece prosperar a tese sustentada pela defesa no sentido de que a pequena porção apreendida com o paciente – 9 g (nove gramas) de maconha – ensejaria a atipicidade da conduta ao afastar a ofensa à coletividade, primeiro porque o delito previsto no art. 28 da Lei nº 11.343/06 trata-se de crime de perigo abstrato e, além disso, a reduzida quantidade da droga é da própria natureza do crime de porte de entorpecentes para uso próprio.

Isso porque a saúde pública não deve ser protegida pelo Direito Penal, pois antes de qualquer coisa deve ser promovida e estendida a todos os cidadãos por políticas públicas adequadas, inclusive no que se refere aos usuários de drogas que queiram ser tratados, sendo inviável pensar que toda a coletividade é atingida diante de uma pretensa potencialidade ofensiva da conduta de portar drogas para uso pessoal.

Afinal, como questiona Orlando Zaccone[4]o que é saúde pública? Trata-se na verdade de algo difícil de conceituar dada a amplitude que a expressão alcança, sendo relevante lembrar a opinião de Juarez Tavares ao afirmar que a função do direito penal não deve estar direcionada à proteção de bem jurídico tão amplo, pois essa legitimidade está condicionada a hipótese de que o bem jurídico foi lesado ou posto em perigo[5].

Luiz Regis Prado diz, nesse sentido, que a saúde pública, mesmo sendo de interesse coletivo deve exigir algum grau de lesividade individual para que possua relevância penal. Do mesmo modo que deve possuir perigo concreto para que seja tutelada[6], valendo lembrar as lições de Luís Greco[7]:

[…] Definições de bem jurídico que o transformem em uma entidade ideal, em um valor, em algo espiritual, desmaterializado, são indesejáveis, porque elas aumentam as possibilidades de que se postulem bens jurídicos à la volonté, para legitimar qualquer norma que se deseje. Ordem pública, segurança pública, incolumidade pública, confiança, tudo isso pode ser mais facilmente entendido com bem jurídico se o conceito deste se referir a meras entidades ideais, e não a dados concretos. […] Note-se que realidade não é o mesmo que realidade empírica, porque o mundo real não se esgota naquilo que se pode verificar por meio da investigação das ciências naturais: a honra, por exemplo, é uma realidade, apesar de não lhe ser essencial o aspecto empírico. […] Bens jurídicos seriam, portanto, dados fundamentais para a realização pessoal dos indivíduos ou para a subsistência do sistema social, nos limites de uma ordem constitucional.

Prossegue o citado autor[8]:

De um lado, temos bens jurídicos coletivos como o meio ambiente, a fé pública (crime de falso), a Administração pública e sua probidade (crimes de corrupção). De outro, a incolumidade pública (chamados crimes de perigo comum), a saúde pública (crimes de tóxico), a segurança no trânsito (crimes de trânsito), as relações de consumo (crimes contra o consumidor). O curioso é que este segundo grupo de bens jurídicos coletivos é proposto e defendido pela generalidade de nossa doutrina, em alguns casos (crimes de perigo comum) sem maiores questionamentos, em outros, como nos crimes de tóxico e de trânsito, justamente como alternativa à construção de crimes de perigo abstrato. […] O que não parece ser visto é que, no final das contas, acabou-se por legitimar, da mesma forma, a antecipação do direito penal. […] como agora haveria verdadeira lesão, e não mais mero perigo abstrato, como a saúde pública seria lesionada, e não somente posta em perigo abstrato pelo porte de entorpecentes, desaparecem todos e quaisquer problemas de legitimidade. Afinal, o tal princípio da lesividade, que exige lesão (ou perigo concreto) a um bem jurídico, estaria atendido (…) parte da doutrina embarcou num empreendimento que, segundo me parece, será uma das mais fecundas utilizações da teoria do bem jurídico: a desconstrução de bens jurídicos só aparentemente coletivos […] A soma de vários bens jurídicos individuais não é suficiente, porém, para constituir um bem jurídico coletivo, porque este é caracterizado pela elementar da não-distributividade, isto é, ele é indivisível entre diversas pessoas. Assim, cada qual tem a sua vida, a sua propriedade, independente das dos demais, mas o meio ambiente ou a probidade da Administração Pública são gozados por todos em sua totalidade, não havendo uma parte do meio ambiente ou da probidade da Administração Pública que assista exclusivamente a A ou a B. Já o bem jurídico saúde pública, por exemplo, nada mais é do que a soma das várias integridades físicas individuais, de maneira que não passa de um pseudo-bem coletivo. […] Falar em saúde ou incolumidade pública, por exemplo, esconde os déficits de legitimidade de antecipações da tutela penal. [Grifo nosso]

Portanto, do ponto de vista da proteção a um bem jurídico supraindividual não há como pensar na criminalização da conduta em comento, pois a chamada “saúde pública” não está inserida no conceito de bens juridicamente tutelados, não ao menos para fins de tutela penal.

Na verdade, o único verdadeiramente lesado pelo uso continuado das drogas – sejam elas lícitas ou ilícitas – é o próprio usuário, ideia que traz à tona outra vertente importante para sustentar a atipicidade da conduta.

É a aplicação do princípio da alteridade, pois aqui a lei pune conduta absolutamente inofensiva a direito de terceiros – uma vez que se afaste a lesão abstrata à saúde pública – e, por via transversa, também atenta contra o direito inalienável da liberdade, ou seja, o direito que cada um tem de conduzir sua existência da forma que melhor lhe convir desde que não sejam atingidos direitos alheios.

Por vezes compreendido como princípio autônomo, outras como decorrência do princípio da ofensividade, a alteridade é assim resumida por Luiz Flávio Gomes:

Só é relevante o resultado que afeta terceiras pessoas ou interesses de terceiros. Se o agente ofende (tão-somente) bens jurídicos pessoais, não há crime (não há fato típico). Exemplos: tentativa de suicídio, autolesão, danos a bens patrimoniais próprios e etc (Legislação Criminal Especial. Coleção Ciências Criminais, Volume 6. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2.009, p. 174).

É entendimento que já foi sufragado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo[9]:

1 – A traficância exige prova concreta, não sendo suficientes, para a comprovação da mercancia, denúncias anônimas de que o acusado seria um traficante.

2 – O artigo 28 da Lei n. 11.343/2006 é inconstitucional. A criminalização primária do porte de entorpecentes para uso próprio é de indisfarçável insustentabilidade jurídico-penal, porque não há tipificação de conduta hábil a produzir lesão que invada os limites da alteridade, afronta os princípios da igualdade, da inviolabilidade da intimidade e da vida privada e do respeito à diferença, corolário do princípio da dignidade, albergados pela Constituição Federal e por tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil.

Há, portanto, uma invasão estatal na intimidade do indivíduo e uma ofensa ao seu livre arbítrio, isto é, por mais que seja inaceitável e inexplicável à maioria que alguém possa usar entorpecentes potencialmente perigosos à própria saúde, tal liberdade deve ser garantida. Aliás, é predicado que se encontra na própria Constituição Federal ao prever como direito fundamental da pessoa a garantia de inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X).

Observe-se:

É relevante ponderar que a criminalização do uso de drogas é uma verdadeira incoerência dentro do sistema penal pátrio. Isto porque, o Direito Penal se propõe à tutela de bens jurídicos, protegendo os direitos individuais contra agressões.

Ocorre que, o uso de drogas, por si, não atinge a esfera jurídica de terceiros, a ponto de justificar a ingerência do Estado, através do controle punitivo. Usar drogas é uma escolha pessoal, talvez reprovável no campo da moral, mas não de repercussão penal.

É efetivo que o sujeito pode estar prejudicando a sua saúde pessoal, mas o que o indivíduo faz consigo próprio, sem atingir terceiros, não justifica a repressão penal, tanto é assim que não é crime a auto-lesão ou a tentativa de suicídio.

Nem se alegue que o uso das drogas deve ser reprimido por estar associado à prática de outros crimes. Ora, os crimes que atingem lesivamente a sociedade devem sempre ser reprimidos, mas não a situação antecedente que, por si, não atinge bem jurídico de terceiro. A criminalização não pode funcionar como rotulação apriorística voltada para atingir pessoas, ao invés de fatos lesivos. Tal postura estatal não se sustenta em um Estado Democrático de Direito.

Por fim, a criminalização das drogas nunca atingiu os fins propostos, o consumo só aumentou nas últimas décadas, o tráfico ilícito só aumentou, a violência associada só aumentou![10]

Com efeito, criminalizar a conduta de quem porta drogas para consumo pessoal invade indevidamente a esfera volitiva individual de quem assim se comporta, o que vai de encontro a princípios e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal, sobretudo porque eventuais efeitos deletérios dos entorpecentes atingem somente a quem deles faz uso.

Não bastasse a ofensa à inviolabilidade da intimidade e da vida privada, inegável que a criminalização do uso de drogas também ofende o princípio da isonomia – e aqui a hipocrisia do discurso daqueles que defendem o contrário –, eis que na essência não há grande diferença entre quem consome drogas lícitas e ilícitas, salvante o fato de que no segundo caso o indivíduo está sujeito a uma pena – não vamos discutir agora a natureza das “penas” previstas no art. 28 da Lei de Drogas, pois isso renderia outro viés de análise do caso.

É o que pensa Rodrigo Duque Estrada Roing[11]:

Na essência, a distinção no tratamento penal (destinado a drogas ilícitas) e não penal (destinado a drogas lícitas) viola o princípio da isonomia, não sendo demais insistir que a condutas descritas no art. 28 dizem respeito à esfera privada de determinação de cada indivíduo, pelo que toda intervenção estatal se mostra atentatória ao direito fundamental à intimidade e ao princípio da dignidade da pessoa humana, consectários do regime democrático de direito.

É evidente que tanto as drogas ilícitas como as lícitas são nocivas à saúde, a depender evidentemente da frequência, modo e forma de uso das substâncias, não sendo viável pensar que o Direito Penal é meio eficaz para impedir que aquelas continuem a ser usadas por parcela da população, sobretudo porque é ilusão imaginar que algum dia as drogas serão banidas em definitivo, ou seja, que haverá um vitorioso nessa “guerra”. Como anota Foucaut[12] (…) as drogas são parte de nossa cultura. Da mesma forma que não podemos dizer que somos ‘contra’ a música, não podemos dizer que somos ‘contra’ as drogas.

Com isso não se quer dizer que se esteja aqui fazendo apologia ao uso de drogas – até porque convicções pessoais do juiz devem passar à margem da decisão –, mas apenas trazendo à compreensão que os problemas envolvendo a dependência em drogas (lícitas ou ilícitas) não são combatidos com repressão, já que o Direito Penal nem de longe serve como política de saúde pública.

Afinal de contas uma realidade é inegável, qual seja, o “combate” ou a “guerra” contra as drogas através da repressão penal – que reprime fabricantes, distribuidores e consumidores – já ocorre há vários anos, jamais surtindo o efeito desejado que era colocar fim ao problema, tanto que naufragou de modo evidente a intenção da Organização das Nações Unidas que em 1998, tomada por delirante euforia, prometia um mundo sem drogas em dez anos[13].

Nessa linha de ideias amolda-se perfeitamente o seguinte dito atribuído a Albert Einstein:

Não há maior demonstração de insanidade do que fazer a mesma coisa, da mesma forma, dia após dia, e esperar resultados diferentes.

Investir na educação dos jovens e da população em geral, criar-lhes oportunidades, melhorar a distribuição de renda, dar-lhes alternativas viáveis para evitar o ingresso na criminalidade ou no uso de entorpecentes, eis aí os caminhos para diminuir o consumo de tais substâncias (acabar é impossível, compreenda-se de uma vez por todas). E na medida em que diminuir o número de consumidores, evidente que também será reduzido o comércio dentro de uma lógica meramente econômica de oferta e procura.

Maria Lúcia Karan aborta o tema com propriedade[14]:

Os dispositivos criminalizadores que institucionalizam a proibição e a “guerra às drogas” partem de uma distinção arbitrariamente feita entre substâncias psicoativas tornadas ilícitas (como a maconha, a cocaína, a heroína, etc.) e outras substâncias da mesma natureza que permanecem lícitas (como o álcool, o tabaco, a cafeína, etc.). Tornando ilícitas algumas dessas drogas e mantendo outras na legalidade, as convenções internacionais e leis nacionais introduzem assim uma arbitrária diferenciação entre as condutas de produtores, comerciantes e consumidores de umas e outras substâncias: umas constituem crime e outras são perfeitamente lícitas; produtores, comerciantes e consumidores de certas drogas são “criminosos”, enquanto produtores, comerciantes e consumidores de outras drogas agem em plena legalidade. Esse tratamento diferenciado a condutas essencialmente iguais configura uma distinção discriminatória inteiramente incompatível com o princípio da isonomia.

(…).

Certamente, não há qualquer peculiaridade ou qualquer diferença relevante entre as arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas e as demais drogas que permanecem lícitas. Todas são substâncias que provocam alterações no psiquismo, podendo gerar de pendência e causar doenças físicas e mentais. Todas são potencialmente perigosas e viciantes. Todas são drogas. Seus efeitos mais ou menos danosos dependem, muito mais, da forma como quem as usa se relaciona com elas do que de sua própria composição. Uma droga mais potente consumida com moderação pode ter efeitos menos danosos do que uma droga menos potente consumida abusivamente. Como há muito já mostrou Claude Olievenstein, “o problema da droga não existe em si, mas é o resultado do encontro de um produto, uma personalidade e um modelo sócio-cultural”. Se, assim mesmo, se quisesse levar em conta tão somente o maior ou menor potencial danoso de cada droga em si mesma (seus efeitos primários), a arbitrariedade do tratamento diferenciado se revelaria ainda mais claramente, pois algumas drogas lícitas são potencialmente mais danosas, em sua própria composição, do que algumas drogas tornadas ilícitas.

A violação ao princípio da isonomia estampada na proibição criminalizadora das condutas de produtores, comerciantes e consumidores das arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas já demonstra a manifesta incompatibilidade das convenções internacionais e leis nacionais em matéria de drogas com normas inscritas nas declarações internacionais de direitos e constituições democráticas.

Com efeito, distinguir quem usa drogas lícitas das ilícitas ofende a Constituição Federal, já que a igualdade também é primado constitucional inafastável.

A propósito, em decisão sobre a mesma matéria, o Juiz de Direito paulista Bruno Cortina Campopiano[15], consignou:

Não compete ao direito penal fazer juízo de valor sobre ditos artifícios, anatemizando alguns e comprazendo com outros (como as bebidas alcoólicas, por exemplo). Pouco importa, para fins de manejo da justiça criminal, indagar sobre os possíveis efeitos nocivos que tais estratagemas possam causar em seus adeptos. Com imensa sabedoria, Alice Bianchini já asseverou que “sempre que o direito criminal invade as esferas da moralidade ou do bem-estar social, ultrapassa seus próprios limites em detrimento de suas tarefas primordiais (…). Pelo menos do ponto de vista do direito criminal, a todos os homens assiste o inalienável direito de irem para o inferno à sua própria maneira, contanto que não lesem diretamente [ao alheio]” (Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, pág. 33).

A possibilidade de fazer escolhas, por mais esdrúxulas ou inexplicáveis que possam parecer aos terceiros expectadores, deve ser encarada como uma prerrogativa inexorável da espécie humana, umbilicalmente ligada à autonomia da vontade que, antes e para além de ser um direito, é uma característica que nos distingue das demais espécies.

Não se pode fechar os outros ainda a outra realidade palpável – e aqui outra incongruência dessa “guerra” às drogas – qual seja, a seletividade daqueles que são atingidos pela repressão estatal, calhando lembrar que dentro dessa ideia de “guerra” estatal, os envolvidos nos delitos relacionados à fabricação, comércio e consumo de drogas acabam inevitavelmente sendo taxados como “inimigos”[16], sem que isso implique necessariamente em eficiência no combate a essa espécie de criminalidade.

A experiência mostra que a repressão recai sobre os pobres apenas, sobretudo em se tratando de usuários de entorpecentes. As áreas que são objeto de atuação da polícia são as chamadas zonas de risco – em geral onde moram os menos aquinhoados – com o subterfúgio de que são locais notoriamente dedicados ao tráfico, isso como se drogas só fossem traficadas e usadas pelos pobres.

Basta verificar que em grande parte dos processos envolvendo tal matéria nenhum usuário foi abordado nas boas casas de entretenimento, nas festas da alta sociedade, nos bares bem frequentados ou em outros locais que não são considerados “de risco”, sendo difícil crer que em tais ambientes não ocorra o consumo de drogas ilícitas ou mesmo que não existam pessoas ao menos portando tais substâncias.

O lado perverso disso é o uso da criminalização como meio de segregação social, mormente porque o condenado pelo uso – a penas que não são penas – recebe uma espécie de “batismo” no sistema penal, conforme bem lembra o Juiz de Direito Alexandre Morais da Rosa[17] em paradigmática sentença abordando a mesma questão ora em julgamento. Torna-se o consumidor de drogas – a rigor uma pessoa doente quando se trata de adicto – reincidente e numa eventual nova prática criminosa, mesmo que por um crime de menor potencial ofensivo, estará fadado às consequências penais da reincidência.

E essa seletividade não vem de hoje e nem é privilégio brasileiro, conforme aponta Thiago Rodrigues[18], que ainda lança luzes acerca da origem do proibicionismo:

Na passagem do século XIX para o século XX, drogas como a maconha, a cocaína e a heroína não eram proibidas. Ao contrário, elas eram produzidas e vendidas livremente, com muito pouco controle. No entanto, passaram a ser alvo de uma cruzada puritana, levada adiante por agremiações religiosas e cívicas, dedicadas a fazer lobby pela proibição. Nos Estados Unidos, as campanhas contra certas drogas psicoativas foram, desde o início, mescladas a preconceitos, racismo e xenofobia. Drogas passaram a ser associadas a grupos sociais e minorias, considerados perigosos pela população branca e protestante majoritária no país: mexicanos eram relacionados à maconha; o ópio vinculado aos chineses; a cocaína aos negros; e o álcool aos irlandeses.

Maria Lúcia Karan[19], mais uma vez com propriedade, esclarece:

A “guerra às drogas” não é e nunca foi propriamente uma guerra contra as drogas. Não se trata de uma guerra contra coisas. Dirige-se sim, como quaisquer outras guerras, contra pessoas: os produtores, comerciantes e consumidores das selecionadas substâncias psicoativas tornadas ilícitas.

Mas, não exatamente todos eles. Os alvos nessa guerra são os mais vulneráveis dentre os produtores, comerciantes e consumidores das drogas proibidas; os “inimigos” nessa guerra, são seus produtores, comerciantes e consumidores pobres, não brancos, marginalizados, desprovidos de poder.

(…).

O encarceramento massivo de afro-americanos nos Estados Unidos da América nitidamente revela o alvo e a função da “guerra às drogas” naquele país: perpetuar a discriminação e a marginalização fundadas na cor da pele, anteriormente exercitadas de forma mais explícita com a escravidão e o sistema de segregação racial conhecido como Jim Crow.

O alvo preferencial da “guerra às drogas” brasileira também é claro: os mortos e presos nessa guerra – os “inimigos” – são os “traficantes” das favelas e aqueles que, pobres, não-brancos, marginalizados, desprovidos de poder, a eles se assemelham.

A explícita opção bélica deixa claro o descompromisso com os direitos fundamentais dos indivíduos: guerras e direitos humanos são naturalmente incompatíveis. Violência, mortes, doenças, encarceramento massivo são o resultado dessa danosa e sanguinária política, institucionalizada nas convenções internacionais da Organização das Nações Unidas (ONU) que impõem as diretrizes criminalizadoras adotadas pelas legislações internas dos mais diversos Estados nacionais em matéria de drogas.

Característica marcante de tais diplomas internacionais e nacionais é a sistemática violação a princípios garantidores positivados em normas inscritas nas declarações internacionais de direitos e constituições democráticas.

Essa linha argumentativa apenas reforça a tese de desigualdade na aplicação do Direito Penal, usado de modo pouco democrático e levando mais em conta a pessoa atingida – Direito Penal do autor – do que propriamente a conduta tida como delituosa, tanto que na (…) “guerra às drogas” a seletividade do sistema penal se mostra mais evidente. Assim, necessário destacar que o que é considerado tráfico para alguns, no caso os mais vulneráveis e etiquetados pelo sistema penal, para outros é considerado porte de drogas. Não é sem razão que a grande maioria da população carcerária é composta por negros e pobres. O sistema penal é seletivo. Como bem destacou Jacqueline Sinhoretto, em estudo sobre o mapa do encarceramento, “há uma aplicação desigual das regras e procedimentos judiciais”. Assim, por exemplo, no momento em que o policial escolhe quem deve ou não revistar. Ou a maneira de tratar uma pessoa flagrada portando uma determinada quantidade de entorpecentes. “A quantidade pode ser a mesma. Determinadas pessoas podem ser acusadas por porte e outras, por tráfico“, disse a pesquisadora[20].

Tal particularidade consiste em mais uma afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana, sendo certo que a política de combate às drogas que seja embasada na repressão não funciona, assunto que merece um debate sério e destituído dos preconceitos que normalmente cercam essa discussão, tornando factível ainda a hipótese de que a regra penal em mesa não se presta a combater o pretenso ilícito, tornando-se na prática uma norma inócua[21].

Mais uma vez destacando excerto da decisão do Juiz Alexandre Morais da Rosa:

O saudoso professor Alessandro Baratta deixou evidenciado em toda sua obra que a maior resistência à descriminalização é da opinião pública. Todavia, essa atitude repressiva desfruta do aspecto simbólico e proporciona a ilusão da segurança, bem como da resolução do conflito. A ilusão é perfeita na cultura do repasse de responsabilidades, as quais, ao final, acabam incidindo na pessoa da própria vítima/autor. É preciso, pois, ter-se a coragem de tratar o problema social das drogas como problema de saúde pública, como deixa claro Vera Malaguti Batista. Essa mudança de perspectiva é necessária para o efetivo cumprimento da promessa de dignidade da pessoa humana e do reconhecimento do adolescente como indivíduo em situação de formação.

Destaco, por fim, a visão lúcida de Nilo Batista:

Pessoas que realmente sejam viciadas em drogas – lícitas ou ilícitas – precisam de ajuda, e sua família, seus amigos, sua comunidade, seus colegas, seus companheiros de trabalho, grupos especialmente capacitados de pessoas que vivenciaram o mesmo problema, e até médicos, devem-lhes essa ajuda. O Estado pode fomentar os caminhos dessa assistência, mediante programas que facilitem recursos para sua execução. O sistema penal é absolutamente incapaz de qualquer intervenção positiva sobre o viciado. A descriminalização do uso de drogas abre perspectiva para uma abordagem adulta do problema e renuncia a tomar a sentença criminal como exorcismo.

Vale lembrar que está em curso no Supremo Tribunal Federal o julgamento do Recurso Extraordinário 635.659 de São Paulo, com relatoria do Ministro Gilmar Mendes, cujo voto recentemente divulgado foi no sentido da inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas[22]. Embora o julgamento ainda esteja em curso, não se pode fechar os olhos para uma realidade inafastável – e isso foi percebido pelo eminente ministro relator em seu voto –, ou seja, a manifesta desproporção entre o tipo penal incriminador e a conduta do usuário de drogas, sobretudo por conta da ineficácia da punição como meio de “combater” o delito, tanto que a decisão foi no sentido da despenalização da conduta e aplicação das medidas previstas no art. 28 – hoje consideradas como penas – como medidas de natureza administrativa e no âmbito civil, aspectos que certamente merecerão intenso debate no prosseguimento do julgamento que se avizinha.

Com efeito, diante da evolução do Direito Penal, especialmente do funcionalismo de Claus Roxin[23], a conduta que não causa risco a bem jurídico definido é atípica, pois a imputação passa a exigir – diferentemente dos modelos causalista e finalista – algo além do viés subjetivo (dolo) e da relação de causalidade. Imputar a alguém a responsabilidade penal implica criação de um risco (relevante) não permitido em que haja tanto desvalor da conduta como do resultado. Assim, em casos que ausente o perigo de lesão ao bem jurídico, cabe ao julgador ponderar a aplicação da norma e, diante de situação onde tal lesividade inexiste, inadmitir a imposição de uma pena ao agente.

Ainda na esteira da lição de Claus Roxin[24](…) a descriminalização é possível em dois sentidos: primeiramente pode ocorrer uma eliminação definitiva de dispositivos penais que não sejam necessários para a manutenção da paz social. Comportamentos que somente infrinjam a moral, a religião ou a political correctedness, ou que levem a não mais que a uma autopericlitação, não devem ser punidos num Estado social de direito. Pois o impedimento de tais condutas não pertence às tarefas do direito penal, ao qual somente incumbe impedir danos a terceiros e garantir condições de coexistência social.

Lembre-se, ainda, que (…) o princípio da intervenção mínima, que possui, igualmente, assento constitucional, embora não formalizado, propugna a atuação do Direito Penal como ultima et extrema ratio, subsidiária e fragmentariamente, com a função de proteger os bens jurídicos de vital importância social dos ataques mais insuportáveis e apenas nas hipóteses em que os demais mecanismos de controle social mostrarem-se ineficazes (FRANCO, ob. cit., pp. 37 e 38), enfim, nas palavras de Nilo Batista, como “um sistema descontínuo de ilicitudes” (ob.cit., p. 85).[25]

Portanto, em face das diversas vertentes analisadas na presente decisão, é possível vislumbrar a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas, reconhecimento que pode ser feito dentro do chamado controle difuso da constitucionalidade das leis, valendo-se in casu da ferramenta interpretativa da inconstitucionalidade sem redução de texto, solução também adotada pelo Juiz Alexandre Morais da Rosa, na decisão similar já citada:

Desta forma, presente o primado material da Constituição (garantismo de Ferrajoli), bem assim da existência do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito impostergável de escolha (liberdade) do sujeito por situações que lhe digam respeito (CR, art. 3º, inciso I, e 5º, inciso X), inalienados – por serem fundamentais, adotando-se a visão contratualista de Locke –, utilizando-se, ainda, do recurso hermenêutico da nulidade/inconstitucionalidade parcial sem redução do texto, cumpre declarar a inconstitucionalidade material sem redução do texto do art. 28 da Lei n. 11.343/06, na hipótese de porte e consumo de doses pessoais de droga, rejeitando-se, assim, a teoria da existência de uma difusa saúde pública.

A técnica da declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto é proficientemente apresentada por Celso Ribeiro Bastos[26] do seguinte modo:

Trata-se de uma técnica de interpretação constitucional – que tem sua origem na prática da Corte Constitucional alemã – utilizada pelo Supremo Tribunal Federal, na qual se declara a inconstitucionalidade parcial da norma sem reduzir o seu texto, ou seja, sem alterar a expressão literal da lei. Normalmente, ela é empregada quando a norma é redigida em linguagem ampla e que abrange várias hipóteses, sendo uma delas inconstitucional. Assim, a lei continua tendo vigência – não se altera a sua expressão literal –, mas o Supremo Tribunal Federal deixa consignado o trecho da norma que é inconstitucional. É dizer, uma das variantes da lei é inconstitucional. Portanto, faz-se possível afirmar que essa técnica de interpretação ocorre, quando – pela redação do texto na qual se inclui a parte da norma que é atacada como inconstitucional – não é possível suprimir dele qualquer expressão para alcançar a parte inconstitucional. Impõe-se, então, a suspensão da eficácia parcial do texto impugnado sem a redução de sua expressão literal.

Para além disso, necessário considerar que não se justifica na hipótese em comento a movimentação do aparato estatal com a finalidade de punir conduta manifestamente atípica, não podendo ser desconsiderado o custo que um processo judicial representa em termos de recursos materiais e humanos envolvidos, isso sem falar no afastamento de policiais civis e militares – em geral testemunhas nessas ações penais – de suas atividades de repressão a crimes de maior relevância, justamente porque precisam comparecer em juízo para prestar depoimento.

Sobre os diversos aspectos acerca do “custo do processo”, cumpre anotar a lição de João Paulo Orsini Martinelli[27]:

A primeira questão deve ser resolvida considerando não a situação da vítima, e sim os altos custos de um processo criminal. Quando nos referimos aos custos, não são apenas os de ordem econômica, em especial as despesas do Estado para conduzir o trabalho policial e o processo, do oferecimento da denúncia ao esgotamento dos recursos. A estes custos somam-se os de caráter pessoal dos participantes da relação conflituosa. Isto é, além dos gastos econômicos que, não raramente, ultrapassam em muito o valor da lesão, há o desgaste do autor e da vítima.

Sobre o autor do crime pesa o status de acusado de prática delitiva, cujas proporções podem ser incalculáveis. A repercussão pode interferir na vida familiar, no círculo profissional, na obtenção de créditos, enfim, o sujeito fica estigmatizado e, seja qual for o desfecho do processo, a marca poderá nunca ser apagada. À vítima, apesar do provável desejo de punição, cabe o ônus de comparecer aos atos de investigação e processuais. Nesses momentos deverá relembrar o fato, expor os detalhes e encarar o suposto criminoso. Ao juiz a ao promotor resta utilizar parte do seu tempo, que seria mais útil em casos graves, nas situações de pouca monta e que poderiam ser resolvidos de forma menos repressiva.

Considerar o valor da lesão e os custos totais do processo criminal parece atender aos anseios do Estado democrático de direito, uma vez que deixar de usar a máquina repressiva, sempre que possível, significa sua racionalização e restrições ao poder punitivo. Estigmatizar é um preço alto que deve ser compensado com uma lesão relevante ao bem jurídico protegido. O prejuízo de um furto de pequeno valor, por exemplo, e a imposição de alguém na condição de réu são duas medidas muito diferentes e isso pode gerar o desperdício da força do Estado. Enfim, parece ser inevitável considerar, acima da condição da vítima, o custo total da estigmatização.

Aliás, lembre-se que (…) em tempo de pensar a gestão e a estrutura do Poder Judiciário, notadamente após a Emenda Constitucional 45, e face ao acúmulo de processo que gera insuportável morosidade aos jurisdicionados, o princípio da insignificância representa sofisticado mecanismo obstaculizador de demandas cujo custo é injustificável.[28]

Portanto, não se verificando na hipótese vertente a existência de uma conduta típica, conclui-se ser o caso de absolver o acusado na forma do art. 386, III, do Código de Processo Penal.

DECISÃO

Decide a Quarta Turma de Recursos, por unanimidade de votos, conhecer e prover o recurso, para reconhecer a inconstitucionalidade material sem redução do texto do art. 28 da Lei n. 11.343/06 e, por conseguinte, absolver o acusado na forma do art. 386, III, do Código de Processo Penal, vencido o Juiz Edir Josias Silveira Beck que votou pela manutenção da condenação.

Participaram do julgamento com votos vencedores os Exmos. Srs. Drs. Juízes presentes à sessão.

Criciúma, 29 de setembro de 2015.

Edir Josias Silveira Beck

Presidente

Mauricio Mortari

Relator


Notas e Referências:

[1] Lei Antidrogas Anotada, 9ª ed., Saraiva, 2009, p. 40.

[2] Apelação Criminal nº 2009.500859-6, de Araquari. Rel. Juíza Hildemar Meneguzzi de Carvalho. Órgão Julgador: 5.ª Turma de Recursos do Estado de Santa Catarina. Data: 15/03/2010.

[3] HC 174.361/RS, Rel. Ministro Jorge Mussi, 5ª Turma, julgado em 03/02/2011.

[4] D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone. Acionistas do nada: Quem são os traficantes de droga. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 35.

[5] TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

[6] PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. 6. ed. rev. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2013.

[7] GRECO, Luís. “Princípio da ofensividade” e crimes de perigo abstrato – Uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. São Paulo: Revista do IBCCRIM n. 49, 2004, p. 370.

[8] Op. Cit., p. 375-5.

[9] Apelação Criminal n. 993.07.12653-3. Data do julgamento: 31/03/2008; Rel. Desembargador José Henrique Rodrigues Torres Data de registro: 23/07/2008).

[10] PONTAROLLI, André Luis. Drogas – uma questão criminal ou moral? Apenas uma questão entre tantas outras sobre drogas. A inconstitucionalidade da criminalização em debate no STF. Extraído de  http://emporiododireito.com.br/drogas-uma-questao-criminal-ou-moral-apenas-uma-questao-entre-tantas-outras-sobre-drogas-a-inconstitucionalidade-da-criminalizacao-em-debate-no-stf-por-andre-luis-pontarolli/, consulta realizada em 01/09/2015.

[11] ROING, Rodrigo Duque Estrada. Impasses penais e processuais da “política jurisprudencial de drogas”.Boletim do Ibccrim, ano 23, n. 274, setembro/2015, p. 17.

[12] Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e política. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento. Em Verve, São Paulo, Nu-Sol, v. 5, 2004, PP. 264-65.

[13] Na Sessão Especial da Assembleia-Geral das Nações Unidas (UNGASS) de 1988 foi lançado o slogan que se tornou famoso “A Drug-Free World–We Can Do It”, transmitindo a anunciada intenção de erradicar todas as drogas ilícitas–da maconha ao ópio e à coca–até 2008.

[14] KARAN, Maria Lúcia. Extraído de http://www.leapbrasil.com.br/media/uploads/texto/72_Proibi%C3%A7%C3%A3o%20%C3%A0s%20drogas%20e%20viola%C3%A7%C3%A3o%20a%20direitos%20fundamentais%20-%20Piau%C3%AD.pdf?1376532185. Consulta realizada em 01/09/2015, p. 4-5.

[15] Extraído de http://jus.com.br/jurisprudencia/16917/inconstitucionalidade-da-criminalizacao-do-porte-de-drogas. Consulta realizada em 01/09/2015.

[16] O “inimigo” é aquele que assume o perfil do estranho à comunidade, a quem, por sua apontada “periculosidade”, não são reconhecidos os mesmos direitos dos pertencentes à comunidade e que, assim, desprovido de dignidade e de direitos, perde sua qualidade de pessoa, tornando-se uma “não-pessoa”. Ver Zaffaroni, E.R. (2006).

[17] Extraído de http://emporiododireito.com.br/juiz-reconhece-a-nulidade-parcial-sem-reducao-do-texto-do-art-28-da-lei-n-11-34306-nos-casos-de-uso-de-droga-para-consumo-proprio/. Consulta realizada em 01/09/2015.

[18] RODRIGUES, Tiago. Tráfico, guerras e despenalização. Le Monde Diplomatique, setembro/2009, p. 6.

[19] Op. Cit., p. 3-4.

[20] Yarochewsky, Leonardo Isaac. Vítimas da guerra. Extraído de http://emporiododireito.com.br/vitimas-da-guerra-por-leonardo-isaac-yarochewsky/. Consulta realizada em 01/09/2015.

[21] O fracasso da proibição, além de ser evidente, seria facilmente previsível. Drogas são usadas desde as origens da história da humanidade. Milhões de pessoas em todo o mundo fizeram e fazem uso delas. A realidade tem mostrado que, por maior que seja a repressão, esse quadro não muda: sempre há e haverá quem queira usar essas substâncias. E havendo quem queira comprar, sempre haverá pessoas querendo correr o risco de produzir e vender (Maria Lúcia Karan, op. Cit, p. 10).

[22] Extraído de http://s.conjur.com.br/dl/re-posse-drogas-pra-consumo-voto-gilmar.pdf. Consulta realizada em 01/09/2015.

[23] Derecho Penal, parte general. Trad. Luis Arroyo Zapatero. Barcelona: Ariel, 1989.

[24] FRANCO, Alberto Silva (org.). Doutrinas Essenciais de Direito Penal. Tem Futuro o Direito Penal? Vol. I, RT, 2010, p. 577.

[25] Cristiano Ávila Maronna. O princípio da insignificância como excludente da tipicidade em casos de pequena quantidade de droga. Extraído de http://www.novacriminologia.com.br/Artigos/ArtigoLer.asp?idArtigo=1238, consulta efetuada em 11/10/2011.

[26] BASTOS, Celso Ribeiro Hermenêutica e Interpretação Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999, p. 175.

[27] Princípio da insignificância precisa de parâmetros. Extraído de http://www.conjur.com.br/2011-abr-09/principio-insignificancia-parametros-aplicacao. Consulta realizada em 14/06/2013.

[28] Artigo escrito coletivamente por Salo de Carvalho, Alexandre Wunderlich, Rogério Maia Garcia e Antônio Carlos Tovo Loureiro intitulado Breves Considerações sobre a Tipicidade Material e as Infrações de Menor Potencial in AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de e CARVALHO Salo de (organizadores). A Crise do Processo Penal e as Novas Formas de administração da Justiça Criminal. Sapucaia do Sul – RS: Notadez, 2006, p. 144

FONTE: http://emporiododireito.com.br/inconstitucionalidade-material-do-delito-de-porte-de-drogas-para-uso-pessoal-e-reconhecida-pela-quarta-turma-de-recursos-de-criciuma-sc/