Cientistas brasileiros querem derrubar barreiras à pesquisa com maconha
Em países como Estados Unidos, Canadá e Inglaterra, a indústria farmacêutica avança na produção de remédios com substâncias da planta. Entraves legais impedem investigações similares no Brasil.
A maconha foi trazida ao Brasil por escravos africanos, ainda durante o período colonial. Disseminou-se entre índios, mais tarde entre brancos e, por algum tempo, sua produção chegou a ser estimulada pela coroa. Até a rainha Carlota Joaquina habituou-se a tomar chá feito com a erva, depois que a corte portuguesa se mudou para o Brasil, em 1808. A partir de meados do século XIX, circulou por aqui a ideia – importada da França – de que a Cannabis poderia ser usada com fins medicinais. Como anunciava uma propaganda das cigarrilhas Grimault, em 1905, a erva serviria para tratar desde “asmas e catarros” até “roncadura e flatos”.Em 1924, contudo, começou a difundir-se, não apenas no Brasil, mas em âmbito mundial, a tese de que o consumo da maconha era um mal. E um médico brasileiro teve papel importante nessa história.
Durante décadas, o ópio foi o maior problema de saúde pública relacionado às drogas. A Liga das Nações, uma espécie de embrião da Nações Unidas, promoveu duas conferências internacionais sobre o ópio. Na segunda conferência realizada em Genebra, em 1924, explica Elisaldo Carlini, professor do departamento de Psicobiologia da Universidade Federal Paulista (UNIFESP), “o representante brasileiro desandou a falar mal da maconha, dizendo que ela ‘era pior que o ópio’”.
Foi um brasileiro, o médico Pernambuco Filho, durante a II Conferência do Ópio da Liga das Nações, em 1924, que deu início à onda de combate à maconha no mundo inteiro.
A fala do médico brasileiro Pernambuco Filho está registrada em ata e entrou para a história por ter convencido, com o apoio do representante egípcio, os outros países a incluírem a maconha no rol de substâncias a serem combatidas junto com o ópio e a cocaína. O mais curioso é que Pernambuco Filho nunca tinha se pronunciado contra a maconha antes da conferência, nem voltou a referir-se a ela naqueles termos. Não se sabe por que ele comprou essa briga.
Volta do uso medicinal — A partir do testemunho do brasileiro a maconha caiu em desgraça, e a Convenção Única de Entorpecentes da ONU, realizada em 1961, reiterou as restrições à erva, inclusive para o uso científico. Pouco mais tarde, contudo, com o afrouxamento da proibição promovido por alguns países, como a Holanda, o uso medicinal e científico da maconha voltou a ser discutido seriamente.
Uso medicinal não quer dizer, necessariamente, uso da maconha fumada. Novos remédios, aprovados em países como Canadá e Estados Unidos, têm pouco a ver com as cigarrilhas Grimault do início do século passado. O Marinol, por exemplo, produzido nos EUA, é feito com THC (tetraidrocanabinol), a principal substância ativa da maconha, sintetizado quimicamente. Ele combate a caquexia, falta de apetite frequente em pacientes com câncer ou aids. O Sativex, desenvolvido na Inglaterra e hoje comercializado em mais de 20 países, alivia a dor em pacientes com câncer e também combate dores nervosas e sintomas da esclerose múltipla. Ele é vendido na forma de extrato de canabidiol, com aplicação em spray oral.
“Burocracia paralisante” – Enquanto laboratórios estrangeiros patenteiam medicamentos como esses, pesquisadores brasileiros se queixam – conforme declaração de um simpósio internacional realizado em maio deste ano, em São Paulo – da impossibilidade de realizar pesquisas com a planta por causa de uma “burocracia paralisante”. Embora a lei que trata do assunto (a 11.343, de 2006) autorize o plantio para fins científicos, a obtenção de autorizações é difícil e excessivamente demorada.
Segundo Elisaldo Carlini, que hoje tem 80 anos e já estudava os efeitos da maconha na década de 1950 com o professor José Ribeiro do Valle (1908-2000), os dois remédios são exemplos claros de que a pesquisa com a Cannabis é promissora e deveria ser encarada de outra forma no Brasil. “O Brasil já ficou de fora de várias pesquisas internacionais porque não obteve a tempo as autorizações para cultivo da planta ou importação das substâncias ativas”, diz ele. “Isso não faz sentido.”
A opinião é compartilhada por Dartiu Xavier, coordenador do Programa de Orientação a Dependentes da UNIFESP (Proad). “É ridículo que, por causa de uma mentalidade fundamentalista, a gente não avance a ciência”, diz ele.
Mas o que começou com um brasileiro pode terminar com a ajuda do Brasil. O Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD), que congrega inclusive cientistas ferrenhamente contrários à descriminalização da maconha, atualmente defende a retirada da droga da lista de “substâncias particularmente perigosas” da Convenção da ONU, o que abriria caminho para o plantio controlado, com finalidade científica, se tornar mais simples.
O simpósio científico mencionado acima também recomendou a criação de uma agência brasileira de Cannabis medicinal, que pudesse testar e aprovar medicamentos feitos à base de maconha ou produzidos a partir de suas substâncias. “Não fazemos apologia do uso da droga, não indicamos seu uso recreativo nem subestimamos seus riscos. Queremos simplesmente poder investigar o potencial terapêutico da planta”, afirma Xavier. “Ciência não combina com preconceito.”